Brasil, Bolívia e a urgência de repensar as estratégias territoriais – Por Federico Pérez Wrubel

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Por que existe uma parte da sociedade civil que foi beneficiada pelas políticas da Evo, que saiu da pobreza, que cresceu em termos de bem-estar e que contém uma conformação indígena, mas que, no entanto, não reivindica essas transformações e atua em favor da oligarquia? Fizemos a mesma pergunta na Argentina, no Brasil e em outros países da região. Entendemos que o bem-estar material e a inclusão desses setores não trazem necessariamente a conscientização desses direitos, nem sobre a importância das políticas públicas. Acreditamos que seria necessária uma reforma constitucional, como na Bolívia, Equador e Venezuela, para acentuar esses processos.

Contudo, na Bolívia, diferente do que acontece nos outros países citados, o processo passou não apenas pela criação de um Estado plurinacional, com sua própria forma de organização, permitindo que a grande maioria da população indígena seja reconhecida em sua diversidade e alteridade, mas também pelas reformas que resultaram na maior taxa de crescimento da região mantida durante vários anos

Por essa situação, consideramos que os poderes fáticos consideraram inevitável a intervenção dos Estados Unidos, da OEA (Organização dos Estados Americanos) para retomar a agenda pautada pelos interesses da oligarquia. Mas quero ir para outro ponto, para a construção da subjetividade daqueles sujeitos que se beneficiaram com essas políticas e agora são servis à direita que tomou o poder à força.

Territórios evangélicos e a Teologia da Prosperidade

– Você melhorou seu bem-estar durante os governos de Lula e Dilma?– Sim – responde um morador de uma favela.

– A quem se deve esse bem-estar que obteve?

– A Deus.

(Diálogo reconstruído por um militante do PT numa favela, enquanto fazia campanha para Fernando Haddad, contra Jair Bolsonaro).

O golpe de estado do Brasil contra Dilma Rousseff e o recente golpe na Bolívia contra Evo Morales mostram como elemento em comum um importante caráter religioso evangélico, que se observa entre os membros que orquestraram essas campanhas, e o mesmo se reproduzem nas Forças militares e civis que os acompanham. Esse viés religioso é um cristianismo neopentecostal em grande parte, mas também católico evangélico e fundamentalista. A teoria subjacente a essas práticas é chamada Teologia da Prosperidade: seu núcleo “é a convicção de que Deus deseja que seus fiéis tenham uma vida próspera, ou seja, sejam economicamente ricos, fisicamente saudáveis e felizes individualmente”. A fé, na minha opinião, é um valor de mudança na busca de meus benefícios individuais; sendo, pelo contrário, meus sofrimentos equivalentes à minha falta de fé. Minha pobreza material, minhas dores, minhas doenças são um tipo de demônio no meu corpo que causa essas dores. Essa teologia implica na dissociação do sujeito das estruturas sociais e estruturais, uma vez que o benefício e o sofrimento não se devem a questões coletivas, mas a uma questão individual.

A tradução de um benefício ou um crescimento em seu bem-estar material é atribuída a Deus, não às políticas públicas realizadas durante todos esses anos. Podemos transferir o exemplo construído para qualquer país da região. O ponto de ruptura é quando os direitos que o Estado reconhece e garante não são assimilados como tais, mas como uma bênção do Espírito Santo para a fé e a conduta do crente.

O comportamento dos fieis também implica um fator fundamental. Chama a atenção casos como os que acontecem com pessoas desordenadas, reprimidas ou angustiadas por sua realidade material (desemprego, doença, dívidas etc.) e se tornam sujeitos ordenados, precisos, obedientes e disciplinados. Nas igrejas pentecostais, essas pessoas encontram espaços de contenção diante da dolorosa realidade que sofrem (realidade material produzida pelas políticas neoliberais), mas satisfeitos com a estrutura econômica e o sustento que as próprias igrejas podem proporcionar. Também em bairros, vilas e favelas, os pastores ocupam os lugares que antigamente costumavam ser dos padres. Diante das adversidades sofridas, os privados encontram asilo nos pastores, disponíveis 24 horas por dia, enquanto a Igreja Católica, sem padres, não pode ocupar o mesmo território, ou conter a comunidade da mesma maneira.

A teóloga ecofeminista Nancy Cardoso chama esses fenômenos de “cristo-fascismos”, por sua exaltação aos militares, à ordem de Deus e à pátria. Tais espaços são oferecidos como refúgios a misóginos, machistas, racistas, homofóbicos, destacando a figura da família europeia e alimentando o ódio a um inimigo interno que ameaça ordem e valores: no Brasil, esses inimigos são o movimento feminista e a comunidade LGBTI; na Bolívia, são os povos originais.

Esses espaços, quando não conseguem fazê-lo através das estruturas democráticas, buscam canalizar a oposição e o desconforto contra os governos populares, transformando as arenas política em guerras santas em favor de Deus e do país.

Nesse sentido, devemos destacar os Documentos de Santa Fé, desclassificados pela CIA a pedido de Ronald Reagan, e que analisam a situação da América Latina e como ela propicia ações dos Estados Unidos para impedir o avanço da esquerda. Também se analisa o papel das Igrejas e como elas desempenham a função de polícias contrárias à transmissão de pensamentos progressistas, com a Teologia da Libertação e a luta cultural: “a política externa dos Estados Unidos deve começar a neutralizar (não reagir) à Teologia da Libertação, como é usada na América Latina pelo clero a ela vinculado”, diz o livro.

“O papel da igreja na América Latina é vital para o conceito de liberdade política. Infelizmente, as forças marxistas-leninistas passaram a usar a Igreja Católica como uma arma política contra a propriedade privada e o capitalismo produtivo, infiltrando a comunidade religiosa com ideias menos cristãs e mais comunistas”, complementa.

Para os Estados Unidos, sempre ficou claro o lugar da religiosidade popular que a América Latina mantém. O lugar ocupado pela Teologia da Prosperidade não seria o resultado de uma estratégia imperialista para bloquear os espaços de organização comunitária que se constituíram através das Igrejas Católicas, e que ajudam a promover a libertação dos povos do mercado?

(Re)pensar o território e as estratégias

Uma das ações centrais contra essa situação foi implantada pelo Papa Francisco: a chamando o Sínodo da Amazônia (encerrado em 27 de outubro de 2019), onde foi apresentada uma Igreja com rosto amazônico, em defesa das comunidades indígenas e contra extrativismo Além disso, este documento propõe a abertura à ordenação de homens casados, e de mulheres líderes das comunidades, como estratégias de implantação da Igreja Católica nos territórios, na ausência de vocações sacerdotais, combater o avanço da Teologia da Prosperidade na comunidade.

Com relação à Argentina, embora existam autores como Marcos Carbonelli – que argumentam que não é possível que situações como as do Brasil ou da Bolívia possam surgir, porque o campo político é ocupado por duas forças e movimentos históricos como o peronismo e o radicalismo socialdemocrata –, o fato é que as igrejas neopentecostais foram implantadas nesses anos no território com sucesso. Na Segunda Pesquisa Nacional sobre Crenças e Atitudes Religiosas na Argentina, mostrou-se que, entre 2008 e os dias atuais, a hegemonia dos católicos no país foi saber reduzida de 62,9% para 76,5% o eleitor. Nesse mesmo período, os evangélicos passaram de 9% a 15,3%.

Devido a que o campo nacional e popular vai retomar as rédeas do Estado na Argentina, se apresentam duas questões centrais. Por um lado, como está a conformação subjetiva de nossas Forças Armadas? Esses quatro anos não foram gratuitos. É necessário pensar e suspeitar sobre a conformação das Forças Armadas e de segurança, e sua capacidade de salvaguardar uma religiosidade pluralista. Sem contar os possíveis efeitos da gestão fascista da ministra de Segurança, Patricia Bullrich, como representante das embaixadas dos Estados Unidos e de Israel, e como um possível germe do cristo-fascismo.

A outra questão diz respeito à militância territorial e à gestão como Estado, se seremos capazes de obstruir a construção subjetiva promovida pela Teologia da Prosperidade nos territórios, com uma lógica individual e mercantilista, e se poderemos gerar e acompanhar esse processo de encontros coletivos nos territórios.

São perguntas que devemos nos fazer e ter em mente quando pensamos em nossas ações como militantes intelectuais e territoriais, ou como técnicos e intelectuais, com a intenção de transformar uma subjetividade neoliberal em uma subjetividade comunitária, solidária, anti-imperialista e descolonizada. Caso contrário, encontraremos a mesma situação na qual indivíduos que pensam que o pagamento de suas dívidas, a redução de taxas de serviço, seu crescimento econômico, sua operação bem-sucedida contra qualquer doença, que tudo isso é a bênção de Deus, e não o resultado de políticas públicas que devem ser ativadas novamente. Somente dessa maneira poderemos realmente dizer: “neoliberalismo nunca mais”, e seremos capazes de enterrar esse sistema que, como futuro, só nos oferece morte e destruição.

*Publicado originalmente em El Cohete a la Luna. Tradução de Victor Farinelli

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