Aos dezoito anos, em 1965, li um pequeno volume publicado pela Zahar em 1964, titulado «Três Táticas Marxistas», de Stanley Moore. Ali descobri uma simplificação teórica sedutora, não só a respeito das intricadas questões da teoria marxista como súmula da revolução -simplificação que me acompanharia por um largo tempo de vida militante- mas também que me ajudaria na movimentação, nem sempre cordial, dos debates filosóficos da esquerda pensante.
O autor apontava como as » três táticas» (na verdade seria melhor dizer três estratégias para o socialismo), as que se apoiavam nas teses marxianas da tendência à «miséria crescente» que desgastaria a legitimidade do sistema capitalista, levando-o a sua derriocada, as que se fundamentavam na disputa dos «sistemas concorrentes» entre o capitalismo e a suposta superioridade do socialismo soviético, e a terceira «tática», que concebia -dada a eterna «crise final» do sistema do capital- o transcrescimento de uma «revolução permanente», que acabaria, por saltos, em definitivo com a sociedade opressora.
Lembrei-me deste livro e da segurança emocional -traduzida em empáfia juvenil- que me causou a sua leitura, porque ele se ligou ao choque cultural e político que me causou -alguns anos depois- a revolução de Maio de 68, que agora completa 50 anos. Quando aquele movimento cresceu tentei enquadrar o que chamávamos de «nova revolução proletária em andamento», numa das hipóteses táticas analisadas por Moore. Era uma vã tentativa de classificar a força demolidora dos fatos em andamento, principalmente em Paris, na tese da «revolução permanente», ou na disputa entre os «sistemas concorrentes», ou ainda num derradeiro apelo à emergência da «miséria crescente».
Meu objetivo era, a partir da opção por uma das táticas, sustentar que se erguia no horizonte a luz da nova revolução mundial, já prevista, desta feita num país capitalista de proa, depois da gloriosa exceção da Petrogrado de Lenin e Tróstky. O «Quartier Latin» traria o verdadeiro marxismo «às falas», afinal ali estavam Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, misturados ao legado de Politzer e da Rresistência comunista à ocupação nazista. A revolução faria as pazes com a civilização na sua ponta mais avançada, como queria Marx.
Para o meu desespero epistemológico, todavia, nenhuma das teses «táticas» conseguia enquadrar o que ocorria naquele maio insano para a burguesia francesa e, no mínimo libertário e anarco-democrático, para juventude francesa e depois mundial. A movimentação não vinha do revolucionarismo «permanente», cuja eficácia exigiria a força de uma vanguarda proletária, que dirigisse e operasse a estabilidade de um novo poder ditatorial de classe, nos moldes trotstkistas, que inclusive mais tarde militarizaria os sindicatos; a suposta «revolução» também não estava se dando pelo confronto dos dois sistemas que «concorriam», pois França renascia da ocupação nazi, com um estranho vigor capitalista, que começava a dar saúde, viço e estudos, para aquela juventude revolucionária supostamente ingrata com o General De Gaulle.
Era uma revolução que tinha como uma das suas consignas «é proibido proibir», em que os proletários ficavam estáticos -na sua amplíssima maioria- dentro das fábricas, aguardando a linha dos seus sindicatos -indiferentes aos convites dos jovens para fazerem a revolução-; uma revolução na qual a revolta mirava mais os vetustos professores e o conservadorismo da classe média francesa, atravessada pela solidariedade com a revolução vietnamita, mas que dizia -ao mesmo tempo- «faça amor, não a guerra». Esta revolução poderia ser tudo, mas não poderia ser propriamente enquadrada como uma revolução «soviética», pois nesta -em qualquer hipótese das três táticas- o assalto ao poder deveria ser comandado pelo o Partido e a classe básica -esteio do novo poder- seria o proletariado fabril, não o generoso e politicamente viril, estudantado maoista e anarquista.
Maio de 68, todavia, foi o apogeu e a crise da ideia da revolução, nos moldes soviéticos. A URSS tentava, neste período -de forma artificial- ao mesmo tempo que preservar o stalinismo como uma «crua necessidade», libertar-se dele, preparando timidamente as condições para recuperar a democracia soviética, utopia de curta duração, fulminada pelas urgências da Guerra Civil. No entanto, o fuzilamento das melhores cabeças do Partido pela Polícia de Stalin, a instauração do partido único durante um longo tempo, o sacrifício do povo trabalhador na produção, para enfrentar a besta nazista, proporcionou que a Revolução Russa salvasse o mundo do nazismo, mas o fez com a perda -nas brumas da sua história- do seu sentido impossível. Maio de 68, portanto, foi o espasmo brilhante que testemunhou o esgotamento das energias utópicas da revoluções do Século passado e abriu um caminho para a imaginação, não para novas revoluções.
Gravo muitos nomes de Maio, mas quatro deles mantenho na retina da memória: De Gaulle, majestoso e autoritário, falando em nome da suposta salvação da nação burguesa contra a ideia do caos, ensejada por todas as revoluções; Daniel Cohn-Bendit, revolvendo a memória do anarquismo, para extrair dele algo que apontasse para a um novo poder estudantil-proletário, inalcançável e etéreo, como formulação revolucionária; André Malraux, antigo revolucionário chamando a ordem a se movimentar, em nome da «paz» social e da cultura; e, como efeito reflexo -dois anos depois- lembro-me da foto de Jean Paul Sarte, vendendo nas esquinas de Paris, o jornal proibido da extrema-esquerda proletária, «La Cause du Peuple».
Em maio de 1970, este jornal maoista tinha cassada a sua circulação, por Decreto do Ministro do Interior Raymund Marcellin, e seus diretores foram presos. Quando Sarte assumiu a direção do jornal, em solidariedade aos militantes e jornalistas que dirigiam aquela iniciativa de resistência, De Gaulle é perguntado. numa entrevista, se também Sarte «seria preso», ao que o velho General respondeu: «on ne met pas Voltaire en prison». Estas são as minhas memórias de Maio de 68, o ano que que revolução morreu. E também renasceu, com outros horizontes, cuja definição pode estar, simbolicamente, tanto na ousadia de Sarte vendendo o «Cause de Peuple», como na respeitosa resposta de Gaulle -reverente à cultura democrática da nação- afirmando que um país minimamente sério não põe Voltaire na cadeia.